Ivone morou em São Paulo, Rio de Janeiro e Santo André. Teve ateliê de costura por cerca de 15 anos e há 20 anos gerencia uma empresa da família. Fez teatro amador como atriz e vivenciou a ditadura militar. |
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Ivone Vezzá Caielle_I001 Familia de Mario Vezzá, 1946, Santo Andre |
Universidade Municipal de São Caetano do Sul, 11 de julho de 2003.
Núcleo de Pesquisas Memórias do ABC
Entrevistadores:Vilma Lemos e Daniela Macedo da Silva.
Transcritores: Meyri Pincerato, Marisa Pincerato e Márcio Pincerato.
Pergunta:
Local de nascimento?
Resposta:
Eu nasci em Santo André, na Rua Primeiro de Maio, ao lado da casa onde nasceu Celso Daniel, ex-prefeito de Santo André assassinado. Nós morávamos em casas pegadas, aliás a casa dele era uma mansão, era uma casa muito bonita, e a nossa casa era simples, ali onde hoje é o Banco do Brasil.
Pergunta:
Como era essa vizinhança ?
Resposta:
Muito boa. A mãe dele ainda está viva, chama-se Cléia, mas todo mundo a chama de Lourdes, nós não sabemos porque. Ela é uma pessoa fantástica, muito legal, muito mais jovem que a minha mãe e era muito amiga da minha mãe. Minha mãe tinha idade talvez para ser amiga da mãe dela. O senhor João, o pessoal todo dos Beletatto, porque eles são Beletatto, e era uma vizinhança muito boa, muito agradável. Quando eles faziam festas, convidavam meu irmão que era amigo do João Francisco, era formidável. O senhor Bruno praticamente a gente nem via, mas ela tinha muitos filhos, uma filha dela foi professora de inglês do Roberto, e a gente tinha um relacionamento agradabilíssimo. Santo André era uma cidadezinha, cidade pequena. Eu me lembro de a minha mãe contar que quando ela chegou da Itália, meu pai veio para o Brasil, para Santo André, trabalhou dois anos para pagar a passagem de navio para a minha mãe vir, dois anos como pedreiro, e a minha mãe disse que chegou falando italiano, sem nenhum vestido branco para casar, e naquele tempo isso era muito feio, então minha mãe não casou, minha mãe foi morar com meu pai e uns dois anos depois, no batizado da minha irmã mais velha, é que minha mãe foi casar, porque era feio não ter uma roupa branca para casar. Então, o pessoal da vizinhança, se não era italiano, era descendente de italiano, e minha mãe fazia muita força para que quando passasse por alguém, cumprimentasse e dissesse bom dia, bom dia era difícil para ela, então ela cumprimentava as pessoas dizendo bom dia. E as pessoas respondiam: bom diorno, senhora . O esforço dela foi grande, mas ela foi uma pessoa muito interessada na história do Brasil, ela lia os livros da gente, acompanhava aquela meia dúzia de filhos estudando em uma mesa grande, ela acompanhando todo mundo, muito interessada na vida da gente, na vida da vizinhança, ela prestava as ajudas necessárias quando solicitadas, mas não se metia, ela era muito quieta.
Pergunta:
Ela veio sozinha?
Resposta:
Ela veio sozinha.
Pergunta:
E os pais dela ?
Resposta:
Isso é um romance, eu vou ficar aqui um tempão, mesmo porque eu só fui avaliar a intensidade dessa coisa quando eu fui para a Itália, fui conhecer meus primos e a casa onde ela nasceu. Eu só avaliei a intensidade do gesto dela, quando eu fui conhecer. Realmente foi um dia em que eu chorei, em que eu chorei na estrada. A minha mãe veio para cá, a família do meu pai veio aos poucos, vieram os tios, chamaram os velhos, depois o resto dos moços, e as moças ainda ficaram na Itália, eu tive tias que vieram depois, moraram na Itália um bom tempo, quando os pais já estavam aqui.
Pergunta:
Isso foi quando?
Resposta:
A família do meu pai, 1922-24, porque minha mãe chegou no Brasil em 1924. Meu pai trabalhou dois anos para chamar minha mãe, a irmã dele ficou na Itália, porque ele queria minha a mãe. Meu pai só namorou minha mãe, e minha mãe só namorou meu pai, e eles se conheciam. Agora, a família do meu pai era uma família mais rústica, eles falavam palavrão, a minha mãe falava que eles esbrontolavam, essa palavra quer dizer, mais ou menos, blasfemavam. Isso para uma família católica é um terror. Minha avó, mãe da minha mãe, não queria que minha mãe casasse com meu pai de jeito nenhum, ela rezava para minha mãe chegar em Santos e voltar. Primeiro porque se falava que no Brasil tinha cobras na rua, então ela achava que aquilo não era vida para a minha mãe. E depois porque ela não gostava realmente da família do meu pai, e quando eu estive na Itália, um dos meus primos me disse: Sua mãe nasceu naquele lugar, não naquela casa, naquele lugar, a casa dela era ali, foi nessa estrada que ela pegou a mala dela e foi a Pratina pegar o trem para ir para Gênova, em Gênova pegar o navio do Brasil.
Pergunta:
Veio sozinha?
Resposta:
Sozinha, sem ninguém. Ela tinha 22 anos, naquela época, ela era uma adolescente.
Pergunta:
Os dois eram da mesma região?
Resposta:
Os dois eram da mesma região, da mesma idade, meu pai era um mês mais velho que minha mãe, a minha mãe, agora sábado faria 101 anos e meu pai era 1 mês mais velho que minha mãe. Eles se conheceram a vida inteira, e minha mãe veio para cá, sem nenhum parente, sem ninguém, aqui só tinha a família do meu pai.
Pergunta:
Ela tinha irmãos?
Resposta:
Ela tinha muitos, muitos irmãos, toda família italiana tem muitos, e ela deixou todo mundo, e só voltou para a Itália em 1950, vinte e cinco anos depois, foi ano santo, ela foi para a Itália para visitar a mãe, depois ela voltou outras vezes também. Mas minha mãe veio para uma vida super sacrificada, lógico. Quando chegou aqui, ela não tinha dinheiro nem para comprar um vestido branco para casar, nem ela nem meu pai, e eles eram de uma família grande, agora minha mãe fez muita amizade na família do meu pai. Eu acredito que na realidade, os irmãos do meu pai, as irmãs, se davam mais com minha mãe do que com o meu pai. As minhas tias gostavam muito da minha mãe, minha mãe era uma pessoa muito bem quista, os amigos da gente também. Ainda hoje eu encontro alguns amigos que há muitos anos eu não vejo: Puxa! Mas que saudade! Que coisa boa era ir na tua casa e tua mãe oferecer um copo de vinho. Eu falei: Vocês têm saudade da minha mãe e não de mim? Mas a realidade é essa, o pessoal tem muita saudade dessa época da minha mãe. Eu já sou filha temporona, muito coisa eu não lembro, eu nasci no fim da guerra, 1940-42. Nessa época a guerra já estava acabando, eu não lembro nada de guerra, tenho uma memória assim de ver um monte de açúcar, só que aquele açúcar escuro, açúcar mascavo, um monte de açúcar em cima da mesa, secando. É a única recordação que tenho da guerra, outras eu não tenho não. E já peguei uma vida melhor, quando eu já enxergava, já via as coisas, via as coisas que meus colegas tinham, eu estudei em colégio de freira, depois no ginásio do Estado.
Pergunta:
Aqui em Santo André?
Resposta:
Em Santo André, na época que eu estava no ginásio do Estado lá do centro de Santo André, Américo Brasiliense, no tempo em que eu estudava, o banheiro da gente chamava Veneza brasileira, tinha tanta água no chão, que tinha uns tijolinhos para a gente passar, era um terror, era caquético o negócio, era muito ruim, mas tinha professores fantásticos, o nível de ensino era outra coisa. Mas o prédio em si... Quando eu estava já no científico construíram aquele prédio de baixo, aí eu estudei no prédio de baixo, mas uma recordação que eu nunca vou esquecer é aquele banheiro da escola, era um horror e a gente ia ao banheiro fumar, a gente começa fumar no banheiro da escola, e tinha que conviver com aquilo lá se quisesse fumar. Eu já começo a me lembrar da época da saída do colégio das freiras, no segundo ano do ginásio, já ir para o colégio do Américo Brasiliense, aí eu comecei a conviver com as pessoas, a perceber as diferenças sociais. Foi uma época que eu comecei a sentir que, de repente, tinha uma aluna que ia no colégio todo dia de carro, imagina a gente nunca tinha carro, a gente ia ao restaurante Balderi, que o Roberto citou, na terça-feira de carnaval comer pizza. Era o programa da gente, era o único programa do ano. Lógico, que a gente ia dançar, a gente ia brincar, a gente fazia uma porção de coisas, mas um programa que despendesse dinheiro... Dançar não, a gente ia dançar, entrava no clube de graça, eu morava lá no centro de Santo André e nós íamos no baile no clube da Rhodia, que era para lá do trilho do trem, então sempre alguém dava uma carona para ir, porque a gente ia de vestido de baile, vestido comprido, sapato de salto, eu era bem jovem, mas meus irmãos eram mais velhos, podia ir com eles, a coisa era bem liberada nesse ponto, não tinha juizado de menor, nada dessas coisas. Então, eu podia ir com meus irmãos, minha mãe deixava eu ir sem problema nenhum, meus irmãos cuidavam da gente, não dedavam. De vez em quando a gente aprontava alguma, ficava todo mundo quieto e pronto. E a gente ia para o baile do lado de lá da estação de trem. Para voltar nunca tinha carona, lógico, nós éramos sempre os últimos a sair do baile, a gente saía e vinha a pé, passava na padaria Matinal, tomava um cafezinho, aí depois ia para casa, chegava em casa, minha mãe abria a porta e falava: Limparam o salão? Deixaram tudo arrumadinho? Já deixamos tudo arrumadinho e já passamos na missa também. E íamos dormir e pronto, mas ela ficava tranqüila, era um programa normal, ela ficava muito tranqüila, não tinha violência, não tinha nada, a gente tirava o sapato, andava na rua, era muito tranqüilo. Santo André era uma cidade bem caipira, nesse termo de, não caipira de boba, não, mas caipira esperta, assim, uma cidade livre, uma cidade boa, uma cidade super agradável. A gente conhecia todo mundo, todo mundo. Hoje, eu tenho alguma dificuldade de reconhecer as pessoas, porque há muitos anos eu não vejo, mas se eu falo que sou fulana de tal, eu ouço: Puxa! Eu lembro de você, eu lembro da tua mãe, eu lembro do seu pai, não sei o quê. Eu me lembro uma vez, não sei quem escorregou na batata, na casca de banana, essas coisas assim. Santo André era uma cidade muito gostosa, São Bernardo era vila, São Bernardo não chamava São Bernardo, nós vamos para a vila, ir para a vila era ir para São Bernardo.
Pergunta:
E ia como?
Resposta:
Que eu me lembro, meu pai já tinha carro nessa época, mas eu acho que antes tinha jardineira. Eu me lembro uma vez que nós estávamos no carro do meu pai, meu pai não era um bom motorista, aprendeu a dirigir velho, então não era um bom motorista, eu me lembro que entrou um rebanho de ovelhas no meio do caminho, meu pai não tinha paciência e buzinava e as ovelhas não estavam nem aí, não queriam nem saber, eu falei: Pai, pára, espera, elas vão sair e aí a gente vai embora. Era assim, o caipira que eu falei era nesse sentido assim de ser uma cidade quase que agrícola. Santo André e São Bernardo não tinham diferença, a gente não sabia onde começava Santo André, onde começava São Bernardo, não sabia. São Caetano era uma cidade, São Bernardo não, era vila.
Pergunta:
A sua família falava italiano?
Resposta:
Falava, falava. Eu hoje ainda me lembro da minha mãe falar, minha mãe falava com meu pai em italiano, eles falavam italiano, apesar de serem vênetos, eles falavam italiano entre eles, eu me lembro. É lógico que tinha algumas coisas que seriam gírias ou modismos da terra deles, que eles falavam e falavam em italiano. Com a gente falavam em português. Todas nós temos uma boa noção de italiano, porque eles falavam e porque cantavam também, cantavam muito. Na minha casa tinha pilhas de discos, aquelas bolachas pretas.
Pergunta:
A senhora lembra, consegue cantar ainda alguma coisa daquela época?
Resposta:
Eu me lembro de muita coisa, mas eu tenho uma vergonha miserável de cantar. Tinha músicas lindas, cantores de ópera gravavam música popular nessa época, então aquela voz empostada, aquela coisa de Caruso, Gino Beque. Eles cantavam músicas populares. Eu me lembro de uma música chamada Bômbulo, bômbulo é uma pessoa muito gorda, era uma coisa assim: era pato cosi, era grosso cosi lo que amava bômbulo. Porque ele era uma pessoa muito gorda, e essas músicas populares, essas músicas napolitanas a gente ouvia. Hoje eu não sei, eu não entendo o que cantam os napolitanos, se for música vêneta, como por exemplo canta o Sérgio Endrigo, eu sei, eu entendo direitinho, e se for italiano também, mas coisas napolitanas eu não entendo, porque minhas tias falavam, eu tinha tias napolitanas, é uma família muito grande, eles eram dez, doze filhos, as Marias eram a Maria do Mário, a Maria do Pedro, a Maria da França, era um monte de Maria, para saber de quem estava falando precisava qualificar a Maria, elas eram muitas, e elas se davam muito bem, elas se conversavam bastante.
Pergunta:
Os filhos, os seus irmãos, nasceram em casa?
Resposta:
Em casa, todos nós nascemos em casa, todos nós com a mesma parteira. Minha mãe conta que quando ela teve meu irmão mais novo, eu ainda tenho um irmão mais novo, ela chamou a mesma parteira, a parteira estava velhinha e minha mãe falou: Olha, eu não queria te incomodar, mas eu não tenho coragem, nessa altura da vida, de mudar de parteira. E a parteira falou: Imagina, você não dá trabalho nenhum, não tem problema, pode me chamar quantas vezes você quiser. E nascemos todos em casa com a mesma parteira, seis de uma vez, quando nasceu uma das minhas irmãs, por ser menina, meu irmão entrou debaixo da cama e chorou feito um doido, porque ele não queria uma irmã, ele queria um irmão. Chorou desesperado porque era mulher, não era homem; lembro disso de nascimento lá.
Pergunta:
As outras irmãs da sua mãe vieram, os familiares vieram?
Resposta:
Da minha mãe não veio ninguém, ninguém, a minha mãe sempre ficou sozinha aqui no Brasil. Ela tem sobrinhas na Argentina, que nós fomos visitar inclusive mais de uma vez, ela tem família na França e na Itália. Nós ainda vamos, quando a gente vai para a Itália, a gente vai visitar as primas, a gente lá é recebido como rei. Eu vou contar por quê. A terra da família da minha mãe era pequena, como toda terra na Itália, não existem grandes fazendas, e quando morreu a mãe da minha mãe, eles fizeram a divisão do terreno, e escreveram para a minha mãe avisando o porquê, qual era a parte dela e minha mãe respondeu de volta que ela não queria saber, que dividissem entre quem trabalhasse na terra, porque ela não tinha direito, ela nunca trabalhou naquela terra. Então a minha mãe virou a tia rica da América. Mas ela sempre se correspondeu muito, ela sempre escrevia muitas cartas, muitas, e às vezes ela falava: Puxa! Essa carta pegou o avião andando. Escreveu lá no dia 12 e hoje é dia 15 já está aqui e ela escrevia muito para a mãe, para as irmãs, sempre. A minha mãe é a personagem central da minha família, não tenho a mínima dúvida, ela era humilde, ela era quietinha, tranqüila, mas ela era a pessoa central da família, não tenho a mínima dúvida. Você vê que eu falo na minha mãe, os meus amigos falam na minha mãe, o Roberto fala na minha mãe, ela era o centro da vida. Quando a gente começou a fazer teatro, ela não teve preconceito nenhum, nenhum, ela fazia inclusive, ela trabalhava como claque, a gente sempre diz: A mãe era claque. Ela sentava na primeira cadeira e ficava esperando acabar, para começar a bater palma. E falando em claque, o Roberto falou do negócio do João Ramalho, que ele fez o João Ramalho, ele voltou a trabalhar como ator fazendo papel de João Ramalho em As Fronteiras Del Rei, ele pegou os ensaios bem andados porque o rapaz que fazia o João Ramalho não tinha o poderio que precisava. João Ramalho era uma personalidade muito forte, gritava e esperneava e ele precisava dessa fortaleza e o rapaz não conseguia, não tinha físico inclusive, aí então o convidaram, ele deixou crescer o cabelo, deixou crescer a barba, bigode, ele virou o próprio João Ramalho, então tinha alguns textos bem longos, eu lembro de um texto: Mem de Sá, porco do inferno! E gritava. Porque Mem de Sá conseguiu derrubar Santo André, e transferir a população para São Paulo e ele ficava muito bravo. Ele era aplaudido em pé, ele foi muito modesto de não contar isso. Muitas e muitas vezes ele era aplaudido em pé, isso atrapalha o ator, isso atrapalha o ator. É gratificante, mas atrapalha, você perde o fio da meada, de repente você está uma arara e, puxa, que legal, então estão gostando, então é contraditório, mas ele conseguia fazer isso aí numa boa.
Pergunta:
E brincadeiras de infância, a mãe ensinou alguma coisa?
Resposta:
Talvez nem precisasse ensinar, porque éramos muitos, então íamos passando de um para outro, nós passávamos até livros. Eu me lembro de ter estudado latim nos livros de todos os meus irmãos, e as brincadeiras a gente jogava, mãe da rua, pega-pega, queimada.
Pergunta:
Bilboquê?
Resposta:
Acho que não jogava isso não, muito paradinho para jogar isso aí, acho que não, eu gostava de todos os jogos que tinham muita atividade, muita correria. E a gente sempre fazia time. Eu era dona da bola de futebol, se eu não jogasse, não tinha jogo, porque a bola era minha, eu pegava a minha bola, enfiava no meio do braço e ia embora para casa e a molecada ficava uma arara comigo.
Pergunta:
Então não houve muita influência da cultura italiana nas brincadeiras de infância?
Resposta:
Não, não. A gente recitava alguma coisa, ela recitava alguma coisa para a gente, a gente até tem escritas essas coisas porque nós temos um primo na Itália que pesquisa isso, nós temos um primo que é síndaco, síndaco é prefeito, da cidadezinha onde minha mãe nasceu, aliás a casa dele é no lugar onde minha mãe nasceu, e ele pede sempre para a gente o que lembrar da minha mãe falar, para a gente escrever e mandar para ele. Nós temos alguns livros que ele fez citando as fontes, essas coisas todas, mas fora recitar, cantar, eram atividades culturais. Não eram atividades lúdicas assim, de brincadeira, não me lembro, eu não sei se ela ensinou para os meus irmãos, e de repente passou pelos meus irmãos e chegou sem eu conhecer.
Pergunta:
Como era a relação dela, em relação à saudade da mãe?
Resposta:
Ela tinha muita saudade. Era uma pessoa, quando ela foi para a Itália em 1950, a minha avó queria vir para o Brasil, mas a minha avó estava muito velha e além do que na época a gente não sabia o que era, mas era esclerose, esquecida, ela diz que andava de Mota a Pratina, de Pratina a Mota que são duas cidadezinhas pegadas o tempo todo, ela andava muito, ela circulava muito e nós perguntamos: Por que você não trouxe? E ela disse: E se ela não ficar? E se ela no navio de repente quisesse voltar para a Itália? Porque a gente não podia contar muito se ela estava falando aquilo consciente ou não, a gente tinha medo, então ela não trouxe a mãe, mas a mãe ainda viveu um bom tempo.
Pergunta:
Sua escolarização, depois do Brasiliense?
Resposta:
Eu fiz o ginásio e fiz o científico no Brasiliense e depois eu não fiz mais nada. Eu casei e não fiz mais nada. Eu casei, tive filhos e a gente fazia teatro, e era bastante trabalhoso.
Pergunta:
Agora a senhora fez?
Resposta:
Sim, agora fiz faculdade da 3ª idade, fiz faculdade e fiz duas pós-graduações na faculdade.
Pergunta:
Antes da faculdade, fale da juventude, vivências, experiências, lazer?
Resposta:
A gente ia, por exemplo dançar, dançava muito, a gente sabia dançar bastante, era muito gostoso.
Pergunta:
O que dançava?
Resposta:
A gente dançava muito bolero, dançava tango, dançava músicas brasileiras, músicas brasileiras, dançava xote, mandacaru quando foge lá na cerca, a gente dançava muito, nós dançávamos carnaval, carnaval era para dançar mesmo, a gente ia toda noite para o salão, usava lança-perfume, meu pai comprava uma caixinha de rodouro, é lança-perfume da Rhodia, era feito na Rhodia, era uma caixinha de madeirinha, tinha três rodouro, a gente dançava quatro noites, mas só tinha três, aquela era a cota da gente e não sabíamos essa história de cheirar lança-perfume, nada disso. Eu fui ver alguém cheirar lança-perfume, quando eu já estava casada. E eu usei lança-perfume minha vida inteira, com relação a carnaval. Desde os doze anos até os vinte e dois anos, foram dez anos que a gente usava lança-perfume, nunca vi ninguém cheirar, não sabia que cheirava, a gente jogava no pessoal, porque arrepiava mesmo, e fui ver alguma pessoa cheirar lança-perfume e fui perguntar o que ele estava fazendo, eu já era casada e já devia ter uns vinte e dois, vinte e três anos. Era uma coisa tão inocente que a gente nem sabia para que servia. Cinema nós íamos todo domingo na matinê, todo domingo, fosse filme próprio ou impróprio, a gente ia. Nós íamos no domingo na matinê, eu ia com as minhas irmãs, as minhas irmãs mais velhas, já iam de noite, a gente comprava uma caixinha de chocolate que tinha licor dentro do chocolate, o pai de um amigo, Roberto, que era dono dos docinhos, ele vendia as balinhas ali no Cine Tangará. Era um negócio chiquérrimo, era muito chique, a gente fazia roupa para ir na matinê. A minha irmã mais nova, a Noretta, ela é que fazia a roupa para mim, ela que fazia os vestidos da gente, minha mãe já não tinha muita paciência, já estava cansada.
Pergunta:
No cinema, que artista fazia sucesso?
Resposta:
Doris Day, Rock Hudson, faziam bastante sucesso, Fred Astere, Ginger Rogers, dançavam que era uma coisa fantástica, e a gente ficava babando, e sonhando de noite em dançar igual, com aquela leveza. Não lembro mais.
Pergunta:
E o rádio?
Resposta:
Rádio se ouvia muito à noite.
Pergunta:
O que se ouvia?
Resposta:
Eu não lembro muito, me lembro de um episódio de a minha mãe estar na Itália, em 1950, a minha mãe estar na Itália e nós estávamos em casa, só nós, as mulheres, meu pai tinha ido jogar bocha, meu pai jogava bocha e jogava muito bem, meu pai tinha ido jogar bocha, e estávamos nós, acho que na sexta-feira tinha um programa de fantasmas, e nós assistimos ao programa e depois ninguém tinha coragem de subir para dormir, a casa era assobradada e ninguém tinha coragem de subir. Então, nós fomos grudadinhas uma na outra subindo a escada e eu era a última porque eu era a mais nova e eu morria de medo, eu subia a escada agarrada na outra e olhando para trás, para ver se não vinha nada atrás, era muito gozado.
Pergunta:
A mãe foi para a Itália em 1950?
Resposta:
Minha mãe foi para a Itália em 1950, e nós ficamos com meu pai, meu pai que cuidou da gente. A Lúcia e a Noretta faziam a comida e meu pai fazia as compras, ele tinha moto, ia e voltava e saía e ia ver obra e voltava e controlava a gente por seis meses, porque minha mãe ainda voltou de navio, foi e voltou de navio, cada viagem era de vinte e um dias.
Pergunta:
E em termos de guerra...?
Resposta:
Em 1950.
Pergunta:
Ela trouxe impressões do pós-guerra?
Resposta:
Ela trouxe. Ela dizia que a vida da família dela era muito difícil, que eles tinham passado por muita dificuldade, e que os campos estavam destruídos ainda. Na realidade, ela achava que era uma reedição da Primeira Guerra. A minha família veio para cá, o irmão mais velho do meu pai viveu até quase noventa anos aqui em Santo André andando de bicicleta, ele voltou, era bersaleiro, e bersaleiro é um corpo especial de guarda, ele é uma guarda especial, eles têm um tamanho padrão, eles têm um marchar padrão, eles usam um chapéu, ainda tem, eles usam um chapéu cheio de pena na cabeça, eles são guardas especiais, e meu tio voltou cheio de medalhas, foi uma pessoa que fez muitos atos, ele voltou cheio de medalhas e quando ele chegou na terra dele, ele viu o pai, a mãe, e os irmãos passando fome, ele ficou com tanto ódio, que ele diz que arrancou as medalhas, jogou no chão, pisou e falou: Eu fui ganhar essas medalhas para ver isso aqui? Foi embora para o porto e pegou o primeiro navio que ele encontrou para sair. Eles teriam a possibilidade de ir para os Estados Unidos, mas o navio ia demorar mais alguns dias, então ele veio para o Brasil, porque pegava o navio mais depressa, e ele foi chamando toda a família. Eles vieram e já, ainda em 1950, minha mãe dizia que eles tinham uma vida muito difícil. Como eu era criança, não guardei muito na memória, mas quando voltei, a primeira vez foi em 1990, meus filhos, meus primos têm uma vida maravilhosa lá, um dos meus primos é militar reformado, mora em um condomínio que eu vou te contar, ele tem um carro alemão com bancos de couro, ele é aposentado, ele pode ter essa vida. Minhas primas estão muito bem, uns primos meus que moravam na Argentina, voltaram para lá. A Itália vive uma fase fantástica. A cidade onde minha mãe nasceu, não tem uma casa, são só pequenas indústrias, só indústrias familiares, todas as casas foram transformadas em indústrias.
Pergunta:
Namoro e casamento. Como se namorava, como era o casamento?
Resposta:
Era vigiado. Quando a gente começava a namorar, era vigiada. Minha mãe nunca foi muito sargentão, ela sempre foi uma pessoa mais doce, mais tranqüila, e eu tive um namorado, algum tempo, mas, logo em seguida eu conheci o Roberto, aliás eu ainda namorava o outro quando conheci o Roberto. Meus irmãos eram bastante permissivos. Eles diziam: Toma cuidado, você sabe o que faz. Mas não era uma coisa muito controlada, não, a gente podia sair aqui por perto, longe; saí para São Paulo uma vez ou outra com o Roberto, mas minhas irmãs iam junto, uma ou outra, mas também a gente não fazia muita questão de estar sozinhos, e a gente sabia que o caminho era aquele. Eu mesma era a mais rebelde delas, mas não fui assim, ao ponto de desobedecer, de esconder. Quando eu era criança, sim, eu fugia para nadar, adorava nadar, gosto até hoje, aí eu fugia para nadar, mas já adolescente, não. A coisa, a censura externa era grande, depois o que não vão dizer, o que não vão falar, a cidade era pequena, todo mundo se conhecia, aquela lá é filha daquele, olha lá o que ela aprontou, então a gente tinha essa bitola que a gente se colocava, a gente era bitolada, porque a gente tinha medo do que os outros podiam falar.
Pergunta:
Você falou que ia nadar. Onde?
Resposta:
No Aramaçan. Fugia, pegava um ônibus, fugia, guardava o maiô naquela casinha onde fica o registro de água na casa de todo mundo, eu escondia meu maiô ali, saía, via se não vinha ninguém, pegava o maiô enfiava debaixo do braço e fugia para o Aramaçan, que não era lugar bom de nadar, ali era perigoso, era perigoso porque era um lago, a gente nadava no lago, não tinha piscina, mas era um clube.
Pergunta:
Como a senhora conheceu seu marido?
Resposta:
Eu conheci o Roberto, eu tinha outro namorado, desisti do outro namorado, nós não namoramos há muito tempo, acho que tinha no máximo dois anos. Naquela época se namorava com dez, doze anos. E nós casamos bem rapidinho, bem rapidinho, casamos bem depressa. Acho que foi assim, amor à primeira e última vista, nós estamos casados já faz quarenta anos. Nós nos conhecemos porque ele trabalhava em Santo André na refinaria. Tem um episódio gozado na história do nosso conhecimento, eu trabalhava na Aços Villares, aqui em São Caetano, no serviço social, eu tinha dezoito, dezenove anos, eu tinha uma amiga uruguaia, era refugiada política, ela estava fazendo faculdade de medicina, mas por problemas políticos, ela teve que fugir do Uruguai e ela tinha cidadania brasileira, ela tinha as duas cidadanias, e essa minha amiga eu apresentei para todos os meus amigos, ela era bonita, alta, uma moça bonita, eu apresentei para todos os meus amigos no carnaval, naquela brincadeira, que a gente ia, brincava com todo mundo, com os pais dos meus amigos, com as mães, e conheci e fomos, e apresentei para todos os meus amigos, ela morava no largo do Arouche, com um casal de uruguaios. Então, um dia vindo para a minha casa, vinha de trem, uma condução que a gente usava muito, e vindo para a minha casa, ela conheceu uma pessoa no trem e chegou e falou: Encontrei um amigo seu, o Leopoldo e marquei um encontro com ele. Eu falei: Meu amigo Leopoldo não, não tenho nenhum amigo com esse nome. "Não, ele é teu amigo, ele te conhece, não sei o quê, aquela coisa. Não, eu não tenho não! Eu não tenho nenhum amigo chamado Leopoldo, você marcou encontro com a pessoa errada. E agora como é que eu vou fazer? Eu falei: Não sei, você marcou o encontro, você se vira. Aí ela ligou, na minha casa tinha telefone, o telefone era 523, o número do telefone, aí ela telefonou desmarcando o encontro, ele perguntou porque aí ela falou: Porque estou na casa da minha amiga, minha amiga está sozinha e eu não vou deixar minha amiga sozinha. Mas, traga a sua amiga, o que é que tem? Não tem problema nenhum. Carioca ele e filho do maestro Elchio Tavares, então, ele para se projetar, dizia que o nome dele era Leopoldo Elchio Tavares, e não era, era Leopoldo Dutra Tavares, mas ele usava o Elchio do pai dele, porque o pai dele era muito famoso. Então ele disse: Traga a sua amiga, não tem problema nenhum, não sei o quê. Então ela falou: Bom, você que sabe, você quer que eu vá, eu vou, eu vou segurar vela, mas eu vou. Então fui eu lá segurando vela dela, ele era muito esperto, convidou o Roberto, e o Roberto tinha carro naquela época, então saímos para dar uma volta, as duas meio assim, mas foi um passeio, passeamos, conversamos e nós começamos a namorar. Os dois nunca mais se encontraram, o namoro deles não foi para frente, o encontro deles não foi bom para eles, e acho que nós nem namoramos um ano e meio, dois anos, e depois a gente casou. Nós casamos e foi nessa época que a gente começou a fazer teatro amador. Nessa época, na realidade, a gente se divertia muito, era muito gostoso fazer teatro, era uma adrenalina, a emoção de entrar no palco, aquela coisa, era muito responsável, a gente era muito responsável, mas isso não quer dizer que no momento que a gente não estivesse ensaiando, uma turma ensaiando, que a gente não fosse para o banheiro fazer brincadeira, conversar, mudar de assunto, e o Gean mudava o cabelo da gente, aquelas coisas, era uma coisa bem descontraída. A gente não tinha obrigação nenhuma, a gente só tinha obrigação de se satisfazer, e fazer o que era bom.
Pergunta:
A senhora trabalhava em empresa, fazia o quê? Como era, quantas mulheres trabalhavam?
Resposta:
Trabalhei na Aços Villares, eu trabalhava na Assistência Social, eu tinha uma chefe que se chamava dona Ceci, e ela, por coincidência, era irmã de uma freira que foi minha professora em Araras, no colégio interno em Araras também, mas isso eu era muito pequena, e tinha essa irmã Valquíria, minha mãe, porque minha mãe estava doente nessa época, eu fui para o colégio interno sozinha, e a irmã Valquíria era a minha mãe. Quando eu fui para a Aços Villares, eu conheci os olhos, puxa vida, esses olhos. Onde você estudou. Já sei, você conheceu a minha irmã, que era a Valquíria. A dona Ceci também tinha sido freira, mas por problema de saúde teve que deixar, então ela era minha chefe, mas nós éramos subordinadas ao caixa, que era o senhor Salvador. Senhor Salvador era diretor-presidente da associação beneficente. A gente ia fazer visita na casa dos faltosos, o camarada faltava dois ou três dias, a gente ia fazer visita, a gente ia ver, uma vez ou outra, pegava um caso de doença grave, enfiava no carro e levava na usina porque lá tinha os médicos todos os dias. Eu tive uma vez que ajudar a fazer um parto, eu e o motorista da perua, mas não era nada de excepcional, a gente fazia porque tinha que fazer e pronto. Eu me lembro que eu era responsável por atender o pessoal que pedia vale. Naquela época, nos intervalos entre um pagamento e outro, tinha sempre alguém que precisava de vale, então eu era responsável por isso, eu ouvia as queixas todas, resumia, e mandava para a dona Ceci, ela aprovava, voltava para mim, eu fazia o vale, voltava para ela, ela assinava, e aí eu mandava para o caixa e o caixa resolvia isso aí. Isso era uma das minhas atribuições. Eu me lembro que na primeira chuva forte, daquelas que fazem aquela enxurrada na rua, eu olhava aquela enxurrada assim e chorava de vontade de não poder colocar o pé dentro da água, eu tinha, eu era ainda criança grande. Meu pai morreu de acidente, em 1957, foi uma coisa seríssima. Meu pai andava de moto, voltando do clube em que ele tinha ido jogar bocha, a última pessoa que falou com ele foi a Noêmia Assunção, irmã do Paschoalino Assunção, voltando, o ônibus passou por cima dele. Então foi um trauma aquilo, foi uma coisa que marcou muito a vida da gente até hoje. Então, nós já estávamos sozinhas nessa época, sem pai, a minha mãe era a figura predominante, mas até o meu pai que era um italiano muito bravo, respeitava a minha mãe, então quando a gente falava: Posso ir em tal lugar? Minha mãe dizia: Fala com o teu pai. Pai, posso ir em tal lugar? Ele dizia: Fala com a tua mãe. Pai, a mãe deixou. Mãe, o pai deixou. Pronto e acabou, encerrou o assunto. Às vezes a coisa pegava, porque um descobria que não tinha falado. Eu já não tinha pai nessa época, mas tinha responsabilidade, era uma juventude normal, sem problema, minha mãe continuava a dominar o palco ali.
Pergunta:
Como foi sobreviver financeiramente sem a presença do pai?
Resposta:
Foi difícil. Meu pai tinha um seguro de vida da Sul-América que pagava uma vez por ano. Naquele ano ainda não tinha pago, não era a hora ainda de pagar, então o pessoal da Sul-América fez minha mãe pagar, e minha mãe recebeu uma indenização de seguro de vida, que como toda italiana que é segura, que sabe quanto custa, ela fez isso render. Nessas alturas, eu já tinha um irmão engenheiro, meu irmão mais velho já era engenheiro, meu pai tinha uma construtora, então meu irmão empurrou isso para frente, dentro do que podia, ele pagou a faculdade do meu irmão mais novo, e também ajudava na despesa da casa. Minha irmã Noretta também trabalhava, trabalhava na Multibrás nessa época, na Brastemp. E foi assim. Eu já estava trabalhando quando meu pai morreu. Eu estava trabalhando na Sears, em Santo André, tinha uma loja da Sears, mas assim que meu pai morreu, eu saí, eu não conseguia agüentar o ambiente, foi muito difícil, eu estava muito desasossegada, eu não estava bem com a morte do meu pai, e preferi sair; depois de um tempo, eu consegui o emprego na Villares. Era muito fácil conseguir emprego, não era essa coisa de hoje não. Eu sou da fase em que a gente mudava de emprego para ganhar o dobro. Quando eu conheci o Roberto, eu já trabalhava na Villares, eu trabalhei ali uns dois anos e dali eu mudei para a Brastemp, porque minha irmã era secretária executiva na Brastemp, então ela falou: Se você quiser aprender a ser uma secretária, alguma coisa, você vai ter que trabalhar comigo, porque aí você só vai aprender a trabalhar com funcionário, então vem para a Brastemp. Ela me arrumou um emprego na Brastemp e fui ganhando muito mais. Mas eu cheguei a trabalhar só um ano na Brastemp, eu casei, mas antes de casar eu pedi demissão, porque o Roberto é daquela fase que o homem que sustentava a casa , eu sou homem, eu vou sustentar minha casa, e ficou assim.
Pergunta:
E essa história de trabalhadora, como eram os direitos trabalhistas, era registrado, tinha férias, fundo?
Resposta:
Fundo de garantia não existia, é um negócio bem mais recente; registrado sim, IPI chamava, existia um instituto de previdência, quando a gente pedia demissão ou era demitida a gente negociava os anos de casa. Eu, por exemplo, na Brastemp, pedi demissão, mas ganhei algum dinheiro. Eu me lembro que comprei meu enxoval, minhas irmãs me deram muita coisa que elas tinham, porque italiano começa a fazer enxoval para a filha quando ela nasce, mas as minhas irmãs me deram muita coisa, e eu comprei as minha coisas. Eu fiz o meu vestido, eu paguei o vestido com o meu dinheiro. Lógico que eu também já não dava mais nada em casa, você tem que comprar tuas coisas, tinha algumas roupas bem bonitas, a gente era bastante vaidosa, para a gente era muio importante ter um vestido novo para cada baile. Eu não vou mais ao baile com essa roupa porque todo mundo já viu. Essa roupa agora para ir na missa, no cinema, para o baile não, tem que fazer uma nova. Nem sempre era possível, aí tirava a alcinha daqui, pegava umas flores e punha aqui, a gente sempre dava um jeito de dar uma cor nova na roupa, e a gente fazia. Nós tínhamos uma prima aqui na avenida Portugal que tinha uma escola de corte e costura e todo mundo ia lá aprender, eu cheguei lá e disse: Não quero fazer camisinha de nenêm, quero fazer roupa para mim.
Pergunta:
A senhora mencionou o período de internato quando era pequena.
Resposta:
Eu foquei dois anos, eu e minha irmã um pouquinho mais velha que eu, só dois anos mais velha que eu. Nós devíamos ser do capeta, minha mãe estava doente, minha mãe teve um problema de nervo ciático, e fez alguns tratamentos. Elas contam que eu era quase que recém-nascida e minha mãe teve que me desmamar para ir para Itú fazer um tratamento de nervo ciático e eu fiquei na casa da minha outra tia, minha tia Maria, minha mãe era Maria também, e minha tia Maria, aqui na avenida Portugal, ainda existe a casa, uma mansão que está escrito Casa Rosa, qualquer coisa assim, eu fiquei ali naquela casa e quem cuidou de mim foi minha prima Rosa, minha prima mais velha e mais bonita da família. Ela era recém-casada com um dos Luchese, o pessoal que tinha mercearia ali perto do Largo da Estátua, vocês não sabem onde é o Largo da Estátua, porque tiraram a estátua de lá, mas tinha uma estátua e se chamava Largo da Estátua. Então, essa minha prima era casada com o Zé Luchese e eles é que cuidaram de mim, logo esses meses que minha mãe foi se tratar, porque não tinha antibiótico, essas coisas, e eu fiquei na casa deles, eles é que cuidavam de mim, os dois. Eles têm seis filhos homens, e os meninos brincam que eu sou a única irmã deles, porque eu passei um tempo lá, eles não tinham nem nascido, mas eles falam que eu sou a irmã deles. Então eu passei esse tempo lá. Quando eu já estava com uns cinco anos, eu faço aniversário em novembro, eu tinha cinco anos, minha mãe precisou fazer o mesmo tratamento, foi para Itú e ficou internada lá, aquela coisa toda então, ninguém tinha capacidade para cuidar da gente, minhas irmãs não tinham tanta idade assim, então nós fomos para um internato em Araras, em um colégio de irmãs salesianas. Uma fase muito boa, era muito gostoso, eu era a menor do internato, as freiras me cuidavam, a não ser que me obrigava a comer couve frita, que eu não agüentava, o resto era tudo uma maravilha. Elas gostavam muito de mim, me tratavam muito bem, tanto que eu fiz o primeiro ano com seis anos, não tinha obrigatoriedade de ter sete anos completo, elas acharam que eu já estava preparada, me puseram no primeiro ano, eu fui alfabetizada, porque a gente era alfabetizada no primeiro ano, passei para o segundo ano, no segundo ano, minha mãe já estava boa, voltamos para Santo André, aí eu fui estudar em São Bernardo, lá no colégio das freiras São José, eu fiquei lá dois anos, fiz o segundo e o terceiro ano, aí eu vim para o colégio das freiras em São Bernardo, Santo André, fiz quarto e quinto anos, que a gente fazia, e a primeira e segunda série do ginásio. Aí todas as minhas colegas estudavam no ginásio do Estado, e todo mundo dizia, isso é uma coisa para se pensar, quem quisesse passar de ano, estudava em colégio particular, quem quisesse saber, estudava em colégio do Estado, isso era uma coisa que se falava, isso é para pensar, se você vir o que é atualmente... Então eu dei um jeito de me transferir para o colégio do Estado, cheguei e participei para a minha mãe: Olha, eu vou para o ginásio do Estado tá? Não precisa mais pagar escola. E fui para o ginásio do Estado e realmente eu estudei, tive uma belíssima base, tenho lembranças fantásticas de professores, de um altíssimo nível. Um dos meus professores, isso eu já estava no científico, foi o Carlos Galante, inclusive foi candidato a prefeito de Santo André, ele era uma personalidade fantástica, um professor excelente, dá para fechar os olhos e lembrar da aula dele. Tinha uma professora de história também, chamada dona Margarida, a gente chamava ela de Causas e Conseqüências, ela dava aulas maravilhosas, era um nível de ensino muito alto. Eu tive, nesse ponto, muita sorte.
Pergunta:
Vamos falar de teatro?
Resposta:
Vamos. O que eu vou contar para vocês? Roberto falou tão seriamente, eu vou contar algumas coisas gozadas de teatro, algumas coisas que a gente fazia. Cenário. E Fora da barra se passava em um navio, e o cenário tinha que ter, aquelas portas arredondadas do navio, tinha que ter aquelas faixas, tudo limpo, perfeito, cor de bronze porque o navio era na realidade lustrado diariamente, aquela coisa assim, e nós não tínhamos como fazer as faixas, as faixas redondas e altinhas, e um dia nós estávamos passando na feira, nunca vou esquecer isso, o Roberto disse: Olha! Olha! Achei! Achei! Achei! O que você achou ? As faixas! As faixas! Ele pegou uma bolacha, se a gente pintar isso aqui, vai virar uma faixa, mas não tenha a mínima dúvida, pregamos no cenário assim, toda a faixa passamos tinta cor de bronze e ficou o cenário feito de bolacha. Quando alguma estragava, que batia, no dia seguinte, a gente ia lá dava uma coladinha, uma pintadinha, remendava o cenário e pronto, sem problema nenhum. A gente fazia muito disso. A ilusão do teatro, do palco, é uma coisa fantástica, porque você está vendo, você pensa em uma coisa, mas quando você vai olhar de perto, é uma coisa totalmente diferente. Na inauguração do teatro Cacilda Becker, em São Bernardo, a Lúcia era presidente da FEANTA, então fez uma senhora inauguração com banda tocando o hino nacional, uma coisa assim muito programada, muito certa, e a Cacilda Becker foi convidada para vir assistir à inauguração. Ela veio, ela foi a São Bernardo para assistir a inauguração. Então foi toda aquela solenidade, ela recebeu flores, ela agradeceu muito, quando acabou a solenidade, nós íamos passar uma peça para inaugurar o teatro, a gente inaugura o teatro com uma peça, não me lembro agora qual foi a peça, então a Cacilda veio, eu estava junto com a minha irmã Lúcia bem ali atrás, estávamos conversando, a Cacilda veio se despedir da minha irmã, então minha irmã falou: Mas, Cacilda, você não vai assistir à peça de teatro? A gente montou uma pecinha para você assistir. E a Cacilda era toda, toda eu sou a atriz, ela era toda, ela era meia molenga, ela mexia muito os braços, ela fazia muito assim, então a Lúcia olhou e falou para ela: Você não vai ficar? Não, Lúcia, eu preciso ir embora, sabe, Walmor voltou. Ela era atriz até para se desculpar: Walmor voltou eu preciso ir para casa. E foi embora, e ela não assistiu à pecinha. A gente se diverte até hoje, quando a gente tem alguma coisa urgente, quando a gente tem alguma coisa para fazer, a gente fala: Walmor voltou, vamos embora, (risos) vamos fazer. Outras coisas assim, de cair cenário, eu mesma caí. Uma vez no Romanoff e Julieta eu estava fazendo o papel, eu fazia a esposa do embaixador americano, e fazia o papel de um soldado também, e uma das brincadeiras do elenco, que tinha o Valdir Montanhegue, ele era muito amigo da gente, uma das brincadeiras do elenco era dizer: Ivone ganhou papel duplo, é lógico, ela dorme com o diretor. Essas coisas assim, mas era brincadeira mesmo, e eu ria da história. Eu realmente durmo com ele, está com inveja? Mas assim, na brincadeira, se deixava levar essa coisa, e a gente, na realidade, a Lúcia fez um, eu fiz outro soldado porque na realidade nós não encontramos quem fizesse aqueles dois papéis, então quando nós estávamos fora de cena, fora do papel de esposa do embaixador, fazíamos o papel de soldado, e a gente jogava baralho em cena, coisa assim, era uma participação, mas tínhamos que andar por uma passarela, nós tínhamos que começar a peça lá no fundo, mas no escuro, ninguém podia ver a gente chegar lá, a luz só podia ser acendida quando a gente estava lá, a gente fazia sinal que a gente estava no lugar, e andando na passarela no escuro, eu caí da passarela, eu caí no chão, mas não tive dúvida, engatinhei, subi, fui embora para o lugar e fiz sinal. E fizemos a coisa, acho que isso foi em Pinheiros, não tenho certeza, tinha muita coisa gozada, a gente brincava muito.
Pergunta:
E preconceito em relação a mulheres?
Resposta:
Tinha alguns, o Roberto não lembra de algumas coisas, porque são coisas de somenos importância para quem está interessado na direção, dirigir e exigir certas coisas. Eu me lembro no Fora da barra, eu acho, a Noemi trabalhava no Fora da barra, Chapéu cheio de chuva; Noemi e Bimbo, no Fora da barra, eles tinham sido namorados, a Noemi e o Bimbo, os dois atores tinham sido namorados, e na peça eles são marido e mulher, ou namorados, eles têm um envolvimento, e eles se abraçam e se beijam, se conversam no téte-a-téte. Eu não vou contar quem foi que falou não, mas foi da minha família, chegou para ela, e a mãe da Noemi ia assistir a peça, a Noemi era uma gracinha também, chegou essa pessoa da minha família, uma mulher da minha família e falou para ela: Noemi, sua mãe o que que fala de você se agarrar daquele jeito com o Bimbo em cena? Nada! Minha mãe é tão evoluída, ela não acha nada de mais, ela sabe que eu estou fazendo na frente de todo mundo, é coisa da peça e pronto. Como nós tínhamos todo aquele amparo de família, dos meus irmãos, da minha mãe, nós tínhamos muita gente que torcia pela gente, intelectualmente muita gente boa, que torcia finalmente por alguma coisa, que não seja o Teatro de Alumínio em Santo André, alguém para fazer uma coisa diferente, alguém que está seguindo isso, então tinha muita gente que torcia por nós, então essas pessoas que tinham preconceito não chegavam muito perto não, mas a gente sabia que de vez em quando tinha alguma, de vez em quando aparecia algum venenozinho assim, a gente sabia sim.
Pergunta:
A senhora lembra do teatro de alumínio?
Resposta:
Muito pouco. Eu me lembro de ter assistido algumas coisas no Teatro de Alumínio, mas o Teatro de Alumínio teve um apogeu muito alto antes de a gente começar em teatro. Deixa eu explicar o que significava começar em teatro naquela época. A gente não sabia nem ir a um teatro. Quem me levou ao teatro foi Roberto, e levou todas nós, muitas vezes para conhecer os atores e as atrizes. Eu me lembro de ter conhecido o Leonardo Vilar, a Cleide Iácones, a Cacilda, a Nívea Alícia, porque a gente ia depois na cochia conhecer os atores, mas a gente ia deslumbrada, porque nunca tinha visto um teatro. Muitas das pessoas que assistiam a gente também nunca tinham visto um teatro, a gente não ia por exemplo ao Teatro de Alumínio, a gente não conhecia, não que não conhecesse de ouvir falar, mas a gente não ia. Isso tudo foi obra do Roberto, ele que incentivou e começou a me levar para assistir a isso, para ver aquilo, ver um ensaio. A gente começou a ter alguma noção de teatro com ele, porque eu pessoalmente nunca tinha ido. Então, não ia ao Teatro de Alumínio. Comecei a ver algumas coisas do Teatro de Alumínio quando a gente começou a fazer teatro amador, nessa época o Chiarelli já estava bem velho, bem velho. Lembro de ter assistido algumas coisas muito boas, Eles não usam black-tie, depois nós assistimos a uma montagem do Boing-boing que foi muito boa. Em Eles não usam black-tie eu tive uma decepção brutal com o Chiarelli, brutal, porque ele fazia o papel do pai que era líder grevista, o filho fura a greve, e na hora que ele descobre, ele vira para o filho e fala: Seu filho da mãe! Um negócio que soou falso para danar, muito falso, em teatro, principalmente no teatro moderno, como era o Gean Francesco Guarnieri, era um teatro atualíssimo na época, e o cara descobre que o outro é furador de greve e ele vai chamar de filho da mãe? Não! Ali cabia um sonoro palavrão, cabia, eu não falo palavrão não, mas no momento que ele falta a coisa desmorona, ele não teve coragem, depois a gente falou: Chiarelli, ali faltava um palavrão! Ele falou: Eu não tive coragem, não tive coragem. Realmente, nessa época, o pessoalzinho que começou a estudar na EAD, o pessoal que começou a voltar da EAD, Anali, Lucas, João, Petrin, Rosália, esse pessoal, Sérgio, esse pessoal voltou com uma abertura maior para teatro, então o Teatro de Alumínio ficou assim, uma coisa meio parada no tempo, enquanto que o teatro evoluiu tremendamente nessa fase. Houve uma abertura muito grande, um aparecimento de grandes atores brasileiros, autores brasileiros. O teatro é do autor, a gente sabe que ali o autor dá o recado. Eu fico arrepiada quando eu lembro disso. Uma das coisas que a gente foi assistir Eles não usam black-tie, em São Paulo, ver o Guarnieri em cena que era o autor dando o recado dele em cena é algo que desmonta, é algo que cala muito fundo. Foi a época que a gente tomou consciência disso, de problemas sociais, foi a época que a gente começou a ver que o mundo não era Santo André, tinha outras coisas, época que a gente começou a tomar consciência. Nessa época eu já tinha vinte e dois, vinte e três anos, então a gente teve uma infância e uma adolescência muito protegida, por morar em cidade pequena. Roberto não, ele tinha toda essa efervescência, essa ebulição, essa coisa de participar de eleição, eles faziam campanha. Eu estava politizada, mesmo porque nossos pais sofreram a perseguição do fim da guerra. Quando acabou a Segunda Guerra, os italianos eram inimigos do Brasil, então, quem tinha propriedade, teve que passar para o nome dos filhos, porque corria o risco de perder as propriedades. Os italianos, japoneses , alemães, a gente tinha essa vizinhança toda, e essa vizinhança sofria, com certo patrulhamento. Então politicamente a gente ficava quieta porque sabia do anterior patrulhamento, de 1947 a 1950, 1952, era aquela coisa de que todo japonês é falso, judeu comia criancinha, essas coisas todas que eram espalhadas por puro problema político.
Pergunta:
A sua família teve essa questão de perseguição, de ser mal vista?
Resposta:
A gente ouvia falar, eu era criança nessa época, mas eu sei, por exemplo, meu tio, meu tio Ângelo, na casa onde eu fiquei quando criança, essa casa que eu fiquei quando era criança tinha uma faixa preta, ele precisou passar em nome dos filhos porque ele estava sendo ameaçado de perder. Clubes em São Paulo mudaram o nome, o Palestra Itália, mudou para Palmeiras, o Germânia mudou, o Tietê mudou, mas mudaram o nome, mudaram a diretoria, por problemas políticos. Então eu me lembro que o Getúlio era aquela coisa assim dos inimigos, os comunistas, o padre na igreja então era um negócio insuportável, a gente era obrigado a ir na missa, mas o padre Viviane fazia todo o sermão da minha infância, da minha juventude falando do comunismo. Ele era incapaz de passar um conhecimento religioso, ele falava mal dos comunistas, o tempo que ele tinha na missa ele usava para falar mal dos comunistas.
Pergunta:
Uma mensagem para os jovens, considerando a sua experiência belíssima de vida.
Resposta:
Eu acho que a vida tem muitas fases, a gente tem diversos momentos, diversas oportunidades que a gente não pode desperdiçar, nenhuma. A gente é criança, tem que ser criança, deixar os filhos da gente serem crianças, ser adolescente. Também acho que a pior fase da gente é a adolescência, hoje também, ainda é, e a gente tem que aproveitar e fazer tudo que tem vontade dentro da ética, dentro daquilo que você considera certo. É lógico que tem pai, tem mãe, tem uma porção, tem uma sociedade a quem tem que dar satisfação, mas tem muito tempo dentro disso que você pode atravessar e se realizar, e de repente acontece uma coisinha assim na vida que muda tudo, e você tem que aprender a mudar com isso, e desfrutar disso também. Eu conheci o Roberto e acabei casando com ele e desfrutei com ele desse conhecimento brutal que é o mundo teatral, que é essa carga cultural que é muito gostosa. Eu tenho até hoje uma forma de encarar alguns fatos de uma forma teatral, até hoje eu vejo televisão criticamente, de uma forma teatral. Mas isso aí não está bom! Não era a hora, é daqui a pouco e isso vai me completando, isso me faz muito bem. Então, não perder a oportunidade de, de repente, aproveitar um instante que possa te trazer alguma coisa. Esse instante tem que trazer alguma coisa. Não é aproveitar, fazer farra, fazer bagunça, nada disso.